“Quando foi a última vez que um pensador não-americano de uma instituição não-americana surgiu com uma ideia que mudou a maneira como vemos o mundo?” – Moisés Naím, do Carnegie Endowment for International Peace, perguntou recentemente. Existe alguma ideia não-americana que teve um verdadeiro impacto no pensamento global em assuntos internacionais desde o fim da Guerra Fria, como Choque de Civilizações de Samuel Huntington, Fim da História de Fukuyama, ou Soft Power de Joseph Nye?
A incapacidade de encontrar uma resposta clara a esta pergunta provocativa aponta para uma lacuna intrigante: enquanto o mundo está caminhando para a multipolaridade econômica, o nosso mundo intelectual ainda é fundamentalmente unipolar. O campo das Relações Internacionais é dominado, como poucas outras disciplinas, por pensadores americanos ou pensadores que moram nos Estados Unidos. A maioria dos estudiosos tradicionais teria grande dificuldade em nomear qualquer atual pensador chinês, latino-americano, africano ou do Oriente Médio que não se encontrem em uma instituição nos Estados Unidos ou no Reino Unido.
Esta falta de conhecimento e incapacidade de desenvolver novas ideias de fora dos Estados Unidos tem consequências no mundo real. Brasileiros que buscam estudar a China ou a Índia ainda precisam ler livros norte-americanos. O mesmo pode se dizer sobre temas globais como o terrorismo e a intervenção humanitária. Como os principais estudiosos sobre Índia, China ou terrorismo estãonos Estados Unidos, suas análises são inevitavelmente afetadas pela sua localização geográfica e, como consequência, por interesses norte-americanos. Isso reduz a capacidade dos atores não-americanos de obter uma compreensão profunda das questões complexas que podem ser cruciais para a concepção de sua estratégia de política externa.
Em um nível mais global, o fato de que os principais estudiosos parecem estar concentrados em uma pequena área geográfica não ajuda muito a encontrar soluções para os desafios globais. Afinal de contas, nenhum desafio global pode ser resolvido só pelos Estados Unidos.
No plano acadêmico, o domínio norte-americano levanta uma série de questões importantes. Primeiro de tudo, os pensadores que estão fora dos Estados Unidos simplesmente não seriam bons o suficiente para colocarem seus artigos nas mais importantes revistas acadêmicas do mundo? Ou seriam simplesmente incapazes de “falar a língua” das revistas norte-americanas e aplicar os métodos necessários para fazer um artigo aceitável?
Qualidade e linguagem podem desempenhar algum papel, mas a diferença regional na perspectiva pode ser ainda mais importante. Principais periódicos acadêmicos do mundo no campo das relações internacionais escolhem artigos sobre temas de “relevância global”. No entanto, o que é relevante e o que não é difere dependendo de para quem você perguntar. Embora os acadêmicos americanos possam acreditar que a proliferação nuclear, o terrorismo e a ascensão da China sejam as questões mais importantes do mundo, os africanos podem se preocupar mais com as doenças infecciosas, a redução da pobreza e a degradação ambiental. No entanto, esses temas certamente sempre parecerão pouco atraentes para os editores de revistas como Foreign Affairs ou Foreign Policy.
Um dos motivos pelos quais os Estados Unidos ainda produzem ou acolhem a grande maioria dos principais pensadores de relações internacionais é que eles ainda são o único país com uma perspectiva verdadeiramente global. Nenhum país ou região está inteiramente fora da esfera de interesse dos Estados Unidos. Praticamente tudo afeta os interesses dos EUA de alguma forma. Mesmo estudiosos que analisam questões muito específicas em regiões distantes dos EUA – como, por exemplo, Tadjiquistão – podem em algum momento serem chamados para depor no Congresso ou aconselhar o Departamento de Estado. Um estudioso baseado na Índia, especializado nas relações entre Peru e Equador, por outro lado, tem pouca probabilidade de alguma vez ganhar muita visibilidade, e por isso o incentivo para estudar a questão é baixo.
A lógica não se aplica apenas para regiões, mas também para tópicos. Acadêmicos são menos propensos a estudar um problema se o governo nacional não tiver posição sobre ele. Tome intervenção humanitária como exemplo. O Brasil lançou o conceito de Responsibility While Protecting em 2011 durante seu tempo no Conselho de Segurança da ONU. Isto levou a um aumento nas publicações acadêmicas por estudiosos brasileiros nos principais jornais. No volume mais recente da revista Global Responsibility to Protect, que se especializa nessa questão, a metade dos autores moram no Brasil. Hoje, nenhuma conferência acadêmica séria sobre o assunto pode acontecer sem uma participação brasileira. O mesmo vale para a governança da Internet, da qual o Brasil assumiu liderança intelectual. Se o Brasil se tornasse um membro permanente do Conselho de Segurança da ONU, isso afetaria profundamente a academia brasileira, aumentando o número de pesquisadores que estudam as questões de segurança.
Os críticos podem apontar que algumas ideias importantes, tais como a Responsabilidade de Proteger (R2P), têm importantes raízes não ocidentais. Na verdade, Francis Deng, um diplomata sudanês do sul e ex-assessor especial para a Prevenção do Genocídio junto ao Secretário-Geral das Nações Unidas, é um dos pioneiros intelectuais de R2P, e um dos promotores da noção de “soberania como responsabilidade”. No entanto, o debate acadêmico sobre a Responsabilidade de Proteger é dominado pelos EUA e a Europa, e estudiosos como Francis Deng e Ramesh Thakur são exceções. A maioria dos principais pensadores sobre o tema – Gareth Evans, Alex Bellamy, Jennifer Welsh, Edward Luck, Michael Ignatieff, e assim por diante – são todos do chamado “Norte Global”.
A China é o primeiro país em muito tempo a desafiar a presença hegemônica dos Estados Unidos e seu conhecimento global irá se aprofundar como consequência. Porém, como o sistema político chinês não incentiva o pensamento livre, suas universidades são menos atraentes para estrangeiros e, portanto, sua ascensão intelectual será mais devagar.
Outras potências emergentes como a Índia e o Brasil irão levar tempo para estabelecer uma presença verdadeiramente global que gere demanda por conhecimento político em diferentes regiões e áreas temáticas. Portanto, a China parece – por enquanto – ser o único país a desafiar o domínio dos EUA no estudo das relações internacionais em médio prazo. No entanto, uma política externa ativa e engajada em escala global por outras potências emergentes como Brasil, Índia e Turquia contribuiria enormemente não só para melhores resultados nos assuntos internacionais, mas também para um ambiente intelectual global mais rico, interessante e produtivo.
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