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A ordem chinesa paralela

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Quem foi o maior beneficiário dos eventos geopolíticos em 2014? Enquanto é cedo para compreender as consequências dos dois acontecimentos chave – a crise ucraniana e a ascensão do Estado Islâmico no Iraque e na Síria -, parece provável que a China irá emergir como um dos grandes vencedores da dinâmica recente. De fato, visto de Pequim, é difícil imaginar um cenário mais benigno do que aquele que se desenrolou ao longo dos últimos 10 meses.

O novo período de instabilidade no Iraque e na Síria efetivamente limitou as tentativas dos Estados Unidos de prestar menos atenção ao Oriente Médio e se concentrar na ameaça de longo prazo mais potente à hegemonia dos Estados Unidos: a ascensão da China. Enquanto um novo envio de tropas dos EUA para o Oriente Médio parece improvável, o presidente Obama ainda está na posição pouco invejável de coordenar a resposta do Ocidente para o Estado Islâmico, que o governo dos EUA admite ser um “esforço de longo prazo.” No debate sobre a política externa dos Estados Unidos, a discussão sobre a ascensão da China foi mais uma vez ofuscada por debates sobre o Oriente Médio. O mesmo se aplica à crise da Ucrânia e às relações desgastadas da Rússia com o Ocidente, que ocupam muito mais espaço nos debates de think tanks em Washington do que ideias relacionadas à China.

A China deverá se beneficiar por duas razões. Primeiro, a atual dinâmica assegura que os Estados Unidos prestem pouca atenção na ascensão da China e sua projeção cada vez mais global; permitindo que Pequim permaneça fora do radar por mais tempo. Em segundo lugar, as tentativas dos EUA de isolar países como a Rússia leva os novos párias à órbita chinesa sem gerar qualquer custo significativo para Pequim. Como consequência, Pequim tem pouco interesse em ajudar a resolver o problema na Ucrânia. Nunca antes a Rússia foi tão dependente da China como é hoje.

Este é o principal argumento de um novo policy paper sobre a estratégia global da China, publicado pelo Instituto de Estudos Chineses Mercator (Merics), um think tank em Berlim. Segundo os autores, a China está lentamente construindo uma “estrutura paralela” que acabará por desafiar a ordem ocidental. No entanto, ao contrário do que muitos outros alarmistas que irrealisticamente predizem que a China destruirá as estruturas existentes em um futuro próximo, o trabalho faz um argumento mais sutil e detalhado: a China continuará a investir em estruturas existentes dominadas pelo Ocidente e tentará reformá-las. Mas, ao mesmo tempo, o país calmamente expandirá suas redes em diversas áreas, pronto para colaborar com aqueles que sentem que as instituições de hoje não conseguem satisfazer as suas necessidades, ou aqueles que procuram aumentar a autonomia em relação aos Estados Unidos.

A estratégia da China, afirmam os autores, não é agressiva. A maioria das estruturas que cria são complementares ou paralelas às que já existem, raramente desafiando-as de frente. São iniciativas que incluem os domínios das finanças, moeda, infraestrutura, o diálogo diplomático, comércio e investimento e segurança (ver imagem abaixo).

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Um dos principais objetivos da criação de estruturas paralelas é aumentar lentamente a autonomia estratégica e reduzir a dependência da China das estruturas existentes. Por exemplo, reforçando o papel da moeda chinesa e estabelecendo um sistema de pagamento global sinocêntrico. No entanto, consciente de suas limitações, a China continua a apoiar ativamente as estruturas existentes, tornando mais difícil para o Ocidente acusar os chineses de minar a ordem vigente.

A lista de iniciativas chinesas é impressionante, e mostra que a China é a única potência não-ocidental com um projeto global, contrastando com os outros países do BRICS, que nutrem ambições globais, mas não têm a influência diplomática para implementá-las. No entanto, vários projetos da lista dos autores são incipientes ou longe de serem operacionalizados. O Banco de Desenvolvimento BRICS até agora existe apenas no papel, e o Acordo de Reservas de Contingência (CRA) dos BRICS (金砖 国家 应急 储备 基金) e a Iniciativa Chiang Mai Multilateralização (CMIM) estão inseridos no sistema do FMI. Da mesma forma, é incerto se o Canal de Nicarágua (尼加拉瓜 運河) será concluído (a construção está prevista para começar em dezembro de 2014).

Ainda assim, os autores estão corretos em apontar que em algumas regiões do mundo, como em partes da África, América Latina e Ásia Central, várias estruturas dirigidas pela China já estão atuando de maneira institucionalizada e, ao mesmo tempo, reforçando o seu impacto (por exemplo, nas áreas de infraestrutura, investimento e swaps de moeda). É difícil imaginar se o Fórum Bo’ao para a Ásia (博鳌 亚洲 论坛) um dia se tornará mais influente do que o Fórum Econômico Mundial (WEF) em Davos. Porém, é provável que a China seja mais bem sucedida quando se trata de oferecer benefícios tangíveis, como o crédito fácil para financiar infraestrutura, especialmente no Sul Global.

Os autores são cautelosos e não articulam previsões específicas sobre a velocidade com que as instituições sinocêntricas irão suplantar as instituições tradicionais, ou se isso vai acontecer. Em vez disso, eles apontam que a instabilidade global (produzindo regimes párias que precisam de apoio da China) e a inércia institucional (que adia reformas necessárias para proporcionar mais espaço para potências emergentes) são suscetíveis de beneficiar a China, e já diminuem a legitimidade das estruturas existentes.

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Desde que continue a crescer economicamente, a China vai expandir sua influência de qualquer forma. Seja dentro das estruturas existentes e reformadas, que concedem mais autonomia e poder de decisão, ou nas novas instituições criadas de acordo com suas necessidades estratégicas – ou ambos. Como consequência, a China não tem interesse ou necessidade em desestabilizar ativamente as estruturas existentes ou de agressivamente promover alternativas.

As implicações para a política externa brasileira são claras: o Brasil deve manter laços fortes com as estruturas tradicionais e participar ativamente de novas instituições lideradas pela China. Confiar plenamente nas organizações estabelecidas, como o Banco Mundial e o FMI é uma estratégia pouco inteligente, além de arriscada. Afinal, é provável que estas instituições se enfraqueçam nas próximas décadas. Ao mesmo tempo, focar apenas nas instituições criadas pela China seria imprudente, porque muitas delas levarão anos para serem totalmente operacionais, e seu sucesso está longe de ser assegurado. Portanto, engajar-se em ambas as estruturas, tradicionais e novas, é a única opção viável. Em 2015, o presidente do Brasil deve, portanto, aceitar os convites para falar não só em Davos, mas também em Bo’ao.

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Photo credit: Reuters / Kevin Lamarque / The Economist  

SOBRE

Oliver Stuenkel

Oliver Della Costa Stuenkel é analista político, autor, palestrante e professor na Escola de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas (FGV) em São Paulo. Ele também é pesquisador no Carnegie Endowment em Washington DC e no Instituto de Política Pública Global (GPPi) ​​em Berlim, e colunista do Estadão e da revista Americas Quarterly. Sua pesquisa concentra-se na geopolítica, nas potências emergentes, na política latino-americana e no papel do Brasil no mundo. Ele é o autor de vários livros sobre política internacional, como The BRICS and the Future of Global Order (Lexington) e Post-Western World: How emerging powers are remaking world order (Polity). Ele atualmente escreve um livro sobre a competição tecnológica entre a China e os Estados Unidos.

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