por Oliver Stuenkel* — publicado 16/11/2016 05h27
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O Brasil poderia liderar esforços para incentivar um debate regional sobre o registro de armas e aprimorar a gestão conjunta das fronteiras
O Fórum Brasileiro de Segurança Pública recentemente publicou uma série de estatísticas desconcertantes. Em 2015, o Brasil foi palco de 58.383 homicídios, uma quantia alarmante. O número de assassinatos no Brasil cresceu mais de 250% nos últimos 30 anos, o que representa um salto de 13, 9 mil em 1980 para mais de 50 mil em 2012. Na prática, isso significa que uma pessoa é assassinada no país a cada nove minutos; por dia, são 160.
A relevância desses dados fica ainda mais evidente se levarmos em conta que o Brasil não tem disputas territoriais pendentes nem guerras civis, religiosas ou étnicas. Há quem diga que a taxa de homicídios pode ser ainda mais alta, já que por volta de 15% dos assassinatos não são relatados, principalmente nas regiões rurais do país.
A criminalidade exorbitante não é uma novidade. Entre 2004 e 2007, quase 200 mil pessoas foram vítimas de homicídio no Brasil, o que excede o número de mortos nos maiores conflitos armados do mundo durante o mesmo período.
Lamentavelmente, avanços a nível doméstico são improváveis, tendo em vista que o problema está intimamente relacionado a uma complexa miríade de questões que vão da desigualdade e impunidade policial a um sistema de justiça e uma política antidrogas arcaicos, controlados por diferentes níveis de governo.
Para piorar a situação, a “bancada da bala”, composta por mais de 20 legisladores com futuros políticos promissores, tem buscado facilitar a aquisição legal de armas e luta contra a aprovação de leis progressistas, como as que almejam evitar que adolescentes sejam julgados e cumpram penas como adultos.
Frequentemente se ignora que a política externa poderia ser um ingrediente-chave para lidar com a epidemia de assassinatos do país. De fato, considerando que sofre menos ingerência de grupos de interesse e, portanto, enfrenta menos obstáculos a progressos significativos, a política externa pode ser uma das ferramentas mais promissoras para lidar com o problema.
Como? Resumidamente, por meio da construção de regras, normas e sanções internacionais, e da criação de um momentum político internacional que irá, por sua vez, aumentar a pressão sobre atores domésticos para que se adaptem a padrões regionais ou globais.
Há exemplos tangíveis do funcionamento deste mecanismo. Avanços importantes de direitos humanos no Brasil, inclusive a aprovação de leis a respeito da violência doméstica, como a Lei Maria da Penha, são adaptações da legislação brasileira a padrões internacionais, e frequentemente resultam de pressão internacional por parte de grupos multilaterais. A promoção do estabelecimento de padrões regionais também é, portanto, uma ferramenta essencial para promover essas agendas domesticamente.
Estar cercado por governos com legislações mais eficazes contra a violência armada (as que incluem mecanismos de transparência durante o processo de obtenção de licenças de armas) aumenta a pressão para que atores domésticos no Brasil aceitem legislações semelhantes.
Em vários momentos, o Brasil resistiu a essa estratégia, porque há um risco real de que o país seja rechaçado publicamente por seus pares sobre uma série de questões. Por exemplo, além de uma alta taxa de homicídios, o Brasil está entre os países mais perigosos do mundo para jornalistas e para a comunidade LGBT. Além disso, o país tem a maior taxa do mundo de assassinatos de ativistas ambientais.
Como essa estratégia poderia ser usada a favor do Brasil? Um primeiro passo seria a promoção, em escala regional, do registro da posse de armas, bem como o fortalecimento da cooperação fronteiriça.
Apesar da existência de um conjunto de acordos regionais, a maior parte das milhões de armas de fogo no Brasil não são registradas, e por mais que a maioria seja produzida no Brasil, elas são frequentemente vendidas no exterior e contrabandeadas de volta para o país.
O Brasil poderia liderar esforços para incentivar um debate regional sobre o registro de armas e aprimorar a gestão conjunta das fronteiras – bem como priorizar a questão durante reuniões bilaterais com parceiros importantes, como o México e os EUA, e em fóruns internacionais, como a ONU e os BRICS.
O grupo IBAS, composto por Índia, Brasil e África do Sul, poderia se tornar uma plataforma para o compartilhamento de políticas bem-sucedidas, considerando que a África do Sul enfrenta desafios similares.
Uma posição diplomática forte por parte do Brasil nesse tema certamente também terá consequências globais positivas. Atualmente, o Brasil é o quarto maior fornecedor mundial de armas de pequeno porte e munição e ainda não ratificou o Tratado do Comércio de Armas (ATT, na sigla em inglês), assinado pelo país em 2013.
O acordo impede a venda de armas comerciais para Estados e agentes que apresentem um alto risco de cometer crimes contra a humanidade. Apesar de ter sido aprovada por um comitê importante da Câmara, a ratificação está sendo bloqueada no Comitê de Segurança Pública, dominado pela “bancada da bala”.
Naturalmente, esses atores são, até certo ponto, imunes à pressão internacional. Mas adotar uma posição de liderança a nível internacional certamente aumentaria o custo político de estar na vanguarda do atraso.
*Oliver Stuenkel é Professor adjunto de Relações Internacionais na FGV em São Paulo, onde coordena a Escola de Ciências Sociais (CPDOC) em São Paulo e o MBA em Relações Internacionais
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