A impressionante vitória de Donald Trump gerou um pânico global sem precedentes, levando a uma miríade de análises sobre as implicações para os Estados Unidos (por exemplo, o excelente artigo de “A Time for Refusal”, de Teju Cole) e o mundo (“How the West may soon be lost“, de Martin Wolf). Contudo, para compreender o que realmente significa uma presidência de Trump, é necessário analisar as consequências individualmente para avaliar suas probabilidades e articular maneiras de responder a elas.
1) Implicações para a democracia dos EUA
Na esfera doméstica, muitos acreditam que a eleição de Donald Trump representa uma ameaça real às instituições dos EUA e à sua democracia como um todo. Além de enfraquecer o tecido social da sociedade norte-americana e atacar as minorias não-brancas, vangloriando-se de agressões sexuais contra mulheres e zombando de pessoas com deficiência, os ataques verbais sistemáticos de Trump contra o Judiciário, suas ameaças de processar jornalistas e alusões à fraude eleitoral comprometeram significativamente a cultura democrática nos EUA.
Mesmo se Trump atenuasse sua retórica e governasse de forma moderada, a campanha já aprofundou divisões e os EUA levarão tempo para “curar as feridas“, como o próprio presidente eleito reconheceu após sua vitória. No entanto, apesar dos danos maciços causados, a democracia dos EUA provavelmente sobreviverá, considerando a robustez de suas instituições e um conjunto complexo de freios e contrapesos.
2) Implicações para a democracia em uma escala global
Tanto os governos como os cidadãos ao redor do mundo esperavam que os eleitores norte-americanos punissem Trump em 8 de novembro. Embora a campanha já tenha afetado negativamente o ‘soft power’ dos EUA, a vitória eleitoral de Trump reduzirá ainda mais a atratividade dos EUA de forma geral. Ainda que o ‘soft power’ seja difícil de medir e dependa de diversas outras coisas além do governo, uma consequência inicial será uma maior dificuldade de defender a democracia em outras partes do mundo. Vale ressaltar que o Brexit e Trump não ocorreram em países pequenos com visibilidade limitada. Pelo contrário, aconteceram nas duas democracias mais antigas e maduras do mundo, que – apesar de todas as críticas – desempenharam um papel extremamente importante para a democracia no mundo.
Em um momento em que os desafios globais multiplicam-se e um deslocamento de poder para a região da Ásia-Pacífico, Brexit e Trump são prejudiciais aos interesses estratégicos ocidentais, uma vez que reduzem o seu peso político e a sua capacidade de moldar os assuntos globais em um mundo pós-ocidental. A ascensão da política “pós-fato” e identitária ameaça minar a principal vantagem do Ocidente em relação a uma China em ascensão: sua ruidosa, mas, em última instância, moderada democracia estabilizadora, sua aceitação da diversidade e da globalização e sua capacidade de integrar migrantes de todo o mundo.
Democracias agora são vistas como fonte de mais imprevisibilidade do que regimes autoritários. Quanto mais tempo esse cenário durar, mais difícil será convencer outros países de que defender a governança democrática no mundo é tanto moralmente quanto estrategicamente vantajoso. Da mesma forma, quanto mais fortes as correntes anti-islâmicas tornam-se nas democracias ocidentais, mais difícil será reivindicar a superioridade moral e criticar governos na China, em Mianmar e em outros lugares pela forma como tratam suas minorias religiosas.
Populistas no controle de governos em Washington e Londres provavelmente fortalecerão políticos semelhantes em outros lugares. O impacto mais imediato pode tornar-se visível na França, onde Marine Le Pen é uma forte candidata à presidência. Sua vitória provavelmente significaria o fim da União Européia e, portanto, uma fratura completa da aliança ocidental criada após a Segunda Guerra Mundial.
3) Implicações para a ordem global
Diversos analistas apontam que o isolacionismo de Trump será o fim da ordem global atual. Como escreve Philip Stephens, no Financial Times:
O sistema global desenvolvido pelos Estados Unidos vem se desfazendo há algum tempo. Ele não sobreviverá ao afastamento da liderança americana. A crise financeira de 2008, a estagnação da renda, a austeridade e o desencanto com o livre comércio enterraram o consenso econômico liberal. Agora, Trump comprometeu-se a desmantelar os pilares políticos da antiga ordem. (…) Os riscos agora virão rapidamente. O quanto de uma Europa livre pode sobreviver à retirada do guarda-chuva de segurança dos EUA? A Rússia será autorizada a restabelecer sua influência sobre antigos Estados comunistas da Europa Oriental e Central? Os Estados em ascensão no leste e no Sul vão olhar agora para o autoritarismo, em vez da democracia como um modelo para suas sociedades? Quem vai manter a paz nos mares do leste e do sul da China? Quão seguro ou estável é um mundo organizado em torno dos interesses de, e conflitos entre, um punhado de grandes potências?
Várias dessas preocupações são válidas, e Trump pode se tornar uma fonte de instabilidade global se sua equipe permitir que ele tome decisões de política externa. No entanto, devemos ter cuidado para não ficarmos presos a uma narrativa paroquial centrada no Ocidente que assume cegamente que apenas as potências ocidentais podem tomar a liderança e fornecer bens públicos globais. Por mais de um século, uma extrema concentração de poder econômico permitiu que o Ocidente, apesar de representar uma pequena minoria da população mundial, iniciasse, legitimasse e defendesse com êxito políticas no campo econômico ou de segurança. Para a maioria dos observadores, os atores não-ocidentais raramente ou nunca desempenharam qualquer papel construtivo na gestão dos assuntos globais.
Nossa visão de mundo centrada no Ocidente nos leva, assim, a subestimar não apenas o papel que os atores não-ocidentais desempenharam no passado e desempenham na política internacional contemporânea, mas também o papel construtivo que provavelmente terão no futuro. Com potências como a China fornecendo bens públicos cada vez mais globais, a ordem pós-ocidental não será necessariamente mais violenta ou instável do que a atual ordem global.
Potências em ascensão, lideradas pela China, já estão silenciosamente elaborando os blocos construtores iniciais daquilo que poderíamos chamar de “ordem paralela”, que inicialmente complementará e, em algum momento, possivelmente substituirá as instituições internacionais de hoje. Esta ordem já está em construção; inclui, entre outras, instituições como o Novo Banco de Desenvolvimento do BRICS e o Banco de Investimento Asiático (para complementar o Banco Mundial), o Universal Credit Rating Group (para complementar o Moody’s e a S&P), o China Union Pay Visa (para complementar Mastercard e Visa), CIPS (para complementar a SWIFT), BRICS (para complementar o G7) e muitas outras iniciativas.
Nos últimos dias, a China adotou uma abordagem altamente construtiva. Como o Financial Times reconheceu:
Em um sinal de quanto o mundo mudou no reconhecimento da necessidade de combater o aquecimento global, Pequim – uma vez vista como uma força obstrutiva nas negociações climáticas da ONU – está agora liderando o impulso para o progresso, respondendo aos temores de que Trump iria retirar os EUA do acordo [climático de Paris].
À medida que o Ocidente hesita, novas parcerias emergirão, adaptando-se à mudança de poder. Por exemplo, conforme os EUA e a Europa são vistos como menos influentes por Déli e Tóquio, seus laços prosperaram.
Uma dinâmica semelhante se tornará evidente em outras áreas. A China já fornece mais forças de paz para a ONU do que todos os outros membros do P5 combinados. O país criou vários novos bancos de desenvolvimento para ajudar a Ásia a atualizar sua infra-estrutura. Podemos esperar uma liderança global chinesa em muitas áreas diferentes.
Na sexta-feira 11, em resposta a um tweet que postei com os líderes dos membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU em caso de uma vitória de Le Pen na França, a resposta esmagadora foi choque e desespero. Mas um número considerável de twitteratis apontou que Xi Jinping era o líder dos P5 mais comprometido com a globalização, e que a China seria essencial para evitar uma onda de protecionismo. Com os EUA agora em recuo e o mundo à procura de liderança, a China enfrenta um mundo de oportunidades – podemos esperar apenas que Pequim esteja ciente de suas responsabilidades.
A hegemonia ocidental é tão profundamente enraizada e ubíqua que pensamos nela como algo natural, reduzindo nossa capacidade de avaliar objetivamente as consequências de seu declínio. Os receios sobre um caos pós-ocidental são equivocados em parte porque os sistemas passados e presentes são muito menos ocidentais do que, em geral, se supõe. E, embora a transição para uma verdadeira multipolaridade – não só economicamente, mas também militarmente e no que diz respeito à capacidade de definir a agenda – será desconcertante para muitos, pode ser, no final, muito mais democrática do que qualquer ordem anterior na história global, permitindo maiores níveis de diálogo genuíno, uma maior propagação de conhecimento e formas mais inovadoras e eficazes de enfrentar os desafios globais nas próximas décadas.
http://politike.cartacapital.com.br/um-ocidente-fraturado-em-um-mundo-pos-ocidental/
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Política externa contra a violência (Carta Capital)
O Mundo Pós-Ocidental e a ascensão da ordem paralela (OBSERVADOR)
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