Por Nelson Vasconcelos
Quem se liga nas notícias já percebeu há muito tempo que o mundo está vivendo fortes transformações sociais, políticas, econômicas. A hegemonia dos Estados Unidos, por exemplo, parece estar com os dias contados, graças principalmente ao crescimento acelerado dos países orientais. As correntes migratórias também voltaram a ter influência sobre os países europeus, enquanto a “periferia” começa a querer soltar suas amarras históricas. É nesse cenário que ganham mais importância grupos como o BRICS, formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul. Criado no início deste século, o grupo reuniu os principais países emergentes que, naquela época, começavam a chamar atenção dos analistas da economia mundial e, claro, dos investidores globais.
Muita coisa mudou nos últimos 15 anos em cada um desses países, consolidando ainda mais o peso do BRICS para a economia do planeta. Autor do livro “BRICS e o futuro da ordem global”, Oliver Stuenkel, professor de relações internacionais da Fundação Getúlio Vargas e doutor em ciência política, nos conta nesta entrevista por que devemos ficar de olho no BRICS – que tem tudo para ajudar o Brasil a ter mais peso na economia mundial.
Como você vê o Brics daqui a dez anos?
Daqui a dez anos, o grupo BRICS terá um peso econômico ainda maior do que já tem hoje, acima de tudo devido ao crescimento elevado na Índia e na China, a qual em breve se tornará a maior economia do mundo. Apesar de não sabermos se será daqui a dez ou quinze anos, estamos nos aproximando de um mundo centrado na Ásia, e das quatro maiores economias do mundo, duas serão países do BRICS. Isso também aumentará o peso político do grupo. Já não é possível resolver nenhum desafio global — como mudança climática, instabilidade financeira global, ou conflitos – sem a participação ativa dos membros do BRICS. Se estes cinco países disserem: “Temos uma posição comum quanto à mudança climática”, isso será de importância crucial para a próxima cúpula sobre o tema, e para o próprio debate global. Além disso, o grupo está passando por um processo de institucionalização, simbolizado pela criação do Novo Banco de Desenvolvimento.
A política externa do governo Temer é um tanto diferente da política adotada até o fim do governo Dilma. Corremos risco de perder alguma relevância dentro do Brics?
Devido à crise política e econômica, mas também devido ao tempo limitado que tem, a política externa ficou em segundo plano para o governo Temer. Mas vale a pena notar que as primeiras duas grandes viagens do presidente foram para Ásia (China e Índia, para a oitava cúpula do BRICS, em 2016). Nenhum outro presidente viajou para Ásia logo no início do mandato, e isso simboliza a compreensão de que a Ásia é cada vez mais importante para o futuro do Brasil. Da mesma maneira, nossa dependência do continente é cada vez maior. O Brasil está passando por uma crise, mas nos olhos de Pequim, Nova Deli e Moscou, o país não deixa de ser importante no longo prazo. O próximo governo brasileiro precisa voltar a ser protagonista dentro do grupo, como foi no passado.
Os resultados de China e Índia são cada vez mais positivos. Estamos descolando muito deles? Não deveríamos estar acompanhando o mesmo passo?
Sim. Estamos vendo um deslocamento de poder econômico e político para Ásia. O mesmo fenômeno ocorre dentro do grupo BRICS. China e Índia hoje são os principais articuladores de novas ideias em relação às atividades do grupo. Durante o boom das commodities, o Brasil conseguiu se projetar bem no cenário internacional, mas o governo deixou de tomar as medidas necessárias para tornar o crescimento mais sustentável, e hoje estamos pagando o preço. No ano passado, o Brasil foi, das principais dez economias do mundo, a única com crescimento negativo. Mostra que o cenário externo não consegue explicar a crise pela qual estamos passando.
Os integrantes do BRICS conseguem resolver suas diferenças e criar um bloco homogêneo, pronto para brigar com seus “concorrentes”?
Os cinco membros do grupo BRICS têm suas diferenças, algumas delas estruturais, mas isso não significa que não existam grandes incentivos para investir no futuro do grupo. Vale a pena lembrar que qualquer bloco, seja o G7, a OTAN ou a União Europeia, lida com diferenças entre seus membros. Em um mundo cada vez mais multipolar, o Brasil terá que ter boas relações com todos os principais polos de poder. Isto implica trabalhar juntos com os outros membros dos países BRICS, apesar das suas diferenças. Fazer parte do grupo não implica um afastamento de parceiros na Europa e na América do Norte. Independentemente da visão ideológica de um governo, não se pode mais ter o luxo de não interagir de maneira intensa com a China, que hoje é nosso principal parceiro comercial. Ter uma plataforma institucionalizada para isso é um privilégio, e nos ajudará a superar um grande problema. Somos um dos países menos preparados para o mundo centrado na Ásia que virá por aí.
A China é um trator gigante que vai atropelar tudo o que estiver pela frente. Não corremos o risco de ficar muito dependentes do humor chinês?
Sem dúvida, mas já ficamos dependentes da China, como a maioria do mundo. O desafio será como gerir nossa dependência. O que muitas vezes se esquece é que, apesar da relação assimétrica, a China também depende das commodities brasileiros para sustentar seu crescimento. Em recente viagem à China, um burocrata em Pequim me disse: “Daqui a dez, vinte anos, não precisaremos mais da Europa, pois nossos produtos industriais serão superiores. Nossa relação com o Brasil é diferente: precisaremos de suas commodities cada vez mais, pois nunca teremos a capacidade de alimentar nossa população sem importações do Brasil.” Da mesma maneira, investimentos chineses serão cruciais para modernizar a infraestrutura na América Latina. O continente não está integrado, e este é um dos principais problemas na região. É claro que também há um lado negativo, um desafio. O comércio com a China vai crescer em números absolutos e relativos se compararmos o total do comércio brasileiro com o resto do mundo, porém não vai mudar qualitativamente. Em termos absolutos permanece favorável, mas qualitativamente não. Seguimos sendo um fornecedor de commodities, com todo o risco e a volatilidade que isso implica. A questão é que o Brasil não tem alta produtividade de valor agregado. Mas se trata de um desafio interno, nossa dependência com a China é apenas um sintoma disso.
Como você diz no livro, a pergunta não é se a hegemonia do EUA terá fim, mas como isso vai acontecer e quem vai ocupar seu lugar. A China é a grande candidata, com previsão de chegar a 28% do PIB mundial em 2030 – contra 18% dos EUA na mesma época. Minha questão é: os EUA vão deixar isso acontecer? O que eles vão fazer, ou já estão fazendo, para limitar a atuação de blocos como o BRICS?
Eis a grande pergunta. O principal desafio dos Estados Unidos agora é lidar com essa realidade de que dificilmente terão os privilégios que tinham ao longo das últimas décadas. É impossível porque há outras potências, como a China, que também vão querer isso e vão disputar o lugar privilegiado dos Estados Unidos na ordem internacional. A gente viu isso quando a ONU condenou as atividades no mar do Sul da China e a China não se importou muito. Comportou-se como se comportavam os Estados Unidos antes. Está começando a pedir os mesmos privilégios e isso é extremamente difícil. E é o grande desafio dos EUA hoje: gerir a ascensão de outro ator que pede os mesmos direitos que os Estados Unidos tinham e, até hoje, têm. Isso a gente percebe com certa naturalidade, porque os Estados Unidos têm tido um papel de ordenar a ordem internacional, com todo o custo que isso envolve. Há um quarto de milhão de soldados americanos em bases militares mundo afora, mantendo uma certa estabilidade, mas isso também dava direitos a, quando preciso, violar algumas regras. E isso agora não é mais possível, porque o primeiro lugar onde a gente vai ver isso é na vizinhança da China, onde cada vez menos é aceita a presença hegemônica dos Estados Unidos. Se isso for mal gerido, pode haver confronto. Mas a China não é uma potência revolucionária no sentido de querer mudar as regras. Os políticos em Pequim têm uma noção muito clara de que as regras atuais beneficiam muito a economia chinesa – a abertura comercial etc. Então há pouco desejo de alterar isso. O que, sim, a China quer é ter um status mais privilegiado, que, por exemplo, lhe daria o papel de potência hegemônica na Ásia. A grande questão para os próximos presidentes dos Estados Unidos é até que ponto vai ceder a vizinhança da China a Pequim. Obviamente, vai haver resistência no Japão e no Vietnã, que são aliados dos Estados Unidos. Um ponto importante nisso tudo é que há uma tensão, porque, do ponto de vista dos Estados Unidos, a China é uma potência emergente, mas, do ponto de vista chinês, a China apenas volta ao lugar que lhe pertence. A China só deixou de ser a principal economia do mundo em 1870. Então, para ela, apenas está superando uma aberração histórica que ocorreu devido à ascensão precoce do Ocidente. Então, aí, eu acho que a gente vai ter uma tensão de como estas duas potências se acomodam, visto que cada um deles se enxerga como única e especial.