Diante das diferenças entre Bolsonaro e Fernández, cabe às vozes pragmáticas evitar uma ruptura
Federico Merke
Oliver Stuenkel
Há 30 anos, José Sarney e Raúl Alfonsín iniciaram um processo que transformaria a antiga rivalidade entre Brasil e Argentina em uma relação marcada pela cooperação, respeito mútuo e amizade.
Hoje, porém, a relação enfrenta sua pior crise desde então. Jair Bolsonaro e Alberto Fernández trocaram farpas durante a campanha presidencial argentina e, após a vitória do colega, o presidente brasileiro se recusou a parabenizá-lo, em uma postura inédita desde a redemocratização.
Na semana passada, os dois ensaiaram recuos dessa hostilidade. Bolsonaro optou por uma retórica menos agressiva, e Fernández demonstrou senso prático ao indicar Felipe Solá como ministro das Relações Exteriores e Daniel Scioli como embaixador da Argentina em Brasília, ambos políticos experientes com grande capacidade de diálogo.
Mesmo assim, as divergências entre os dois presidentes se manterão e devem dificultar as relações bilaterais nos próximos anos.
Bolsonaro quer reduzir a Tarifa Externa Comum do Mercosul e pretende assinar novos acordos comerciais. Já Fernández é mais reticente em relação à abertura.
Os dois têm visões distintas sobre como resolver o problema da Venezuela, ferida aberta na geopolítica latino-americana.
No entanto, o anúncio de Solá de que seu governo não abandonará o Grupo de Lima —conjunto de países que coordena uma resposta regional à crise venezuelana— é outro sinal de que Buenos Aires não pretende iniciar um conflito com Brasília.
Por fim, as frustrações na tentativa de Bolsonaro de estabelecer uma aliança com Donald Trump e sua aproximação ao líder chinês, Xi Jinping, sugerem que talvez haja algum espaço para que Brasil e Argentina pensem conjuntamente como lidar com as crescentes tensões entre Washington e Pequim.
Na ausência de um diálogo funcional entre os dois mandatários, Brasil e Argentina têm três opções: apostar no fracasso um do outro, ignorar-se mutuamente ou tentar exercer a antiga cooperação, ainda que de modo limitado e focado na redução de danos.
A primeira opção causaria prejuízos irreversíveis à relação bilateral, além de aumentar o risco de tensões na região.
A segunda pode soar atraente para os dois governos, mas prorroga a incerteza sobre o futuro da relação bilateral.
O que essas duas opções não levam em consideração é que nenhum projeto regional avança sem um diálogo azeitado entre Brasília e Buenos Aires.
Além disso, os laços econômicos entre os dois países fazem com que uma eventual recuperação argentina beneficie o Brasil, e vice-versa.
A terceira opção controla parte dos danos que inevitavelmente se abaterão sobre a relação bilateral e permitiria aos países tirar proveito de algumas sinergias importantes, seja cooperando para lidar com a crise na Bolívia —na qual Brasília e Buenos Aires têm interesses em comum—, seja alterando as regras do Mercosul sem causar rupturas.
Essa terceira via, no entanto, dependeria de um protagonismo inédito das forças moderadas de ambos os lados.
Do lado argentino, Sola e Scioli terão o enorme desafio de estabelecer um canal de diálogo com Brasília e de desenvolver uma diplomacia pública envolvendo a sociedade, o mercado e a mídia dos dois países, mostrando o interesse da Argentina em continuar no caminho da cooperação.
Do lado brasileiro, a visita do presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, a Buenos Aires, onde se reuniu com Fernández, foi um importante sinal.
Para Bolsonaro, a guinada pragmática na relação com a China pode servir de modelo para uma postura mais moderada em relação ao vizinho.
Na época, o vice-presidente Hamilton Mourão e a ministra da Agricultura, Tereza Cristina, lideraram o processo de contenção de danos.
No caso argentino, também será preciso que pelo menos um integrante do governo Bolsonaro sirva como ponte entre Buenos Aires e Brasília.
No entanto, muitos outros atores —na política, no setor privado e na sociedade civil— terão que se mobilizar para preservar a aliança mais importante do continente.
Federico Merke é professor de Relações Internacionais da Universidad San Andrés, em Buenos Aires. Oliver Stuenkel é professor de Relações Internacionais da Fundação Getulio Vargas (FGV), em São Paulo.