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Establishment político nos EUA tende a subestimar as chances de Sanders (EL PAÍS)

 

OLIVER STUENKEL
02 MAR 2020 – 16:06BRT

https://brasil.elpais.com/opiniao/2020-03-02/establishment-politico-nos-eua-tende-a-subestimar-as-chances-de-sanders.html

Trump seria favorito em confronto contra Sanders, mas o presidente é mais vulnerável do que parece

Apesar da recente vitória de Joe Biden nas primárias na Carolina do Sul, há uma preocupação crescente entre lideranças do Partido Democrata de que a escolha de Bernie Sanders como candidato acabe viabilizando uma vitória esmagadora por parte de Trump em novembro e a perda do congresso americano, até hoje controlado pelos Democratas. Essa interpretação é compartilhada pela quase totalidade do establishment político dos Estados Unidos. Não surpreende, portanto, que assessores da campanha republicana estejam torcendo abertamente para que o senador por Vermont seja o candidato do Partido Democrata. A candidatura de Sanders também tende a ser bem vista pelo mercado financeiro, que enxerga sua nomeação praticamente como uma garantia da reeleição de Trump.

O argumento de muitos analistas políticos é que Sanders até pode ganhar a maioria dos votos, mas terá dificuldades para mobilizar eleitores suburbanos nos estados mais competitivos, cruciais para obter a maioria dos 538 delegados no Colégio Eleitoral. Vale lembrar que o candidato do Partido Democrata venceu o voto popular em seis das últimas sete eleições presidenciais, mas tanto Al Gore em 2000 quanto Hillary Clinton em 2016 foram derrotados no Colégio Eleitoral contra George Bush e Donald Trump, respectivamente.

Poucos observadores do mainstream americano acreditam que um candidato que se autodeclara “socialista democrático” e que passou sua lua de mel na União Soviética em plena Guerra Fria possa inspirar os eleitores suburbanos, muitos dos quais votaram em candidatos republicanos no passado e que têm uma postura relativamente conservadora em áreas como imigração e saúde pública. Como o voto não é obrigatório (apenas entre 55% e 65% da população costuma votar em eleições presidenciais), o apoio só se traduz em voto se o candidato conseguir convencer o eleitor centrista a sair de casa.

Como disse Barack Obama ― um dos principais expoentes da ala tradicional do partido ― em uma fala recente, os Estados Unidos são um país “menos revolucionário e mais interessado em progresso (…). O americano médio não acha que temos que destruir o sistema [vigente]”. A declaração foi uma crítica pouco velada ao radicalismo de Sanders, que nem sequer esteve filiado ao Partido Democrata durante grande parte da sua carreira política.

De fato, Sanders seria um candidato de alto risco para o Partido Democrata, e o presidente tentaria transformar a eleição em uma suposta escolha entre o capitalismo e o socialismo ― em um país ainda profundamente marcado pelo confronto ideológico da Guerra Fria.

Porém, muitos observadores tendem a esquecer que Trump também é um candidato frágil, e cuja eleição em 2016 foi produto de uma série de erros crassos da campanha de Hillary Clinton, entre eles a decisão de negligenciar estados-chave como Wisconsin. Da mesma forma, Sanders é menos radical hoje do que era em 2016, quando ganhou as primárias dos democratas em 23 estados. Para as eleições de 2020, ele recebeu doações de mais de $130 milhões ao longo da campanha, com mais doações individuais do que qualquer outro candidato nesta eleição, incluindo Trump.

A estratégia de Sanders ficou clara para quem ouviu seus discursos recentes e acompanhou debates de seus seguidores mais fiéis. Consolidado como líder da ala progressista do Partido Democrata, seu próximo passo será tentar aproximar-se do centro, fazendo uma aposta de que seus apoiadores mais fiéis não o abandonariam mesmo se ele assumisse posições mais centristas. Sanders ensaiou uma postura mais moderada em vários momentos ao longo das próximas semanas, e seus assessores avaliam que o experimento foi bem-sucedido. Seguidores não demonstraram sintomas de mal-estar mesmo quando o candidato apresentou posições que se assemelhavam bastante às ideias de Joe Biden, o principal candidato da ala tradicional do Partido Democrata.

Discursos recentes em que Sanders se posicionou contra “fronteiras abertas” e mencionou períodos de transição cada vez mais longos para a implementação de suas propostas mais ousadas, como o “Medicare for All”, são exemplos desse flerte com o centro. Sanders sabe que várias das suas ideias não têm apoio da maioria dos eleitores e buscará diluir a resistência dos democratas mais moderados afastando-as da perspectiva imediata.

Essa estratégia, é claro, pode fracassar: talvez ele perca o apoio dos seguidores mais fervorosos sem tampouco convencer os centristas. Para eleitores suburbanos, no entanto, pode ser uma importante sinalização de que o socialista pode ser mais flexível do que parece. Nos grupos de apoiadores, fala-se abertamente em “pragmatismo” para lidar com o Congresso e com o Senado, dando a entender que Sanders não adotaria essa postura maximalista caso chegasse à presidência.

Uma vez na Casa Branca, Sanders poderia anunciar medidas chamativas para atender seus seguidores mais radicais sem no entanto cortar laços com a ala centrista do Partido. Um decreto de legalização da maconha seria um bom exemplo de medida que agradaria a base do socialista e seria até bem-vista por Wall Street, interessada no potencial considerável do mercado de cannabis.

Em um país onde o ódio contra o establishment político continua sendo um elemento chave da dinâmica eleitoral ― algo que Trump entendeu melhor do que o resto em 2016 ―, Sanders seria o único candidato dos democratas capaz de mobilizar eleitores que desejam mudanças mais profundas. Além disso, apoiadores de Sanders não estão inteiramente equivocados quando apontam que a preocupação dos centristas com Sanders nem sempre tem a ver com as chances de vitória do socialista democrata, mas com o fato de que parte do establishment democrata estaria quase tão incomodada com a possibilidade de ter Sanders na Casa Branca quanto com a ideia de encarar mais quatro anos de Donald Trump.

SOBRE

Oliver Stuenkel

Oliver Della Costa Stuenkel é analista político, autor, palestrante e professor na Escola de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas (FGV) em São Paulo. Ele também é pesquisador no Carnegie Endowment em Washington DC e no Instituto de Política Pública Global (GPPi) ​​em Berlim, e colunista do Estadão e da revista Americas Quarterly. Sua pesquisa concentra-se na geopolítica, nas potências emergentes, na política latino-americana e no papel do Brasil no mundo. Ele é o autor de vários livros sobre política internacional, como The BRICS and the Future of Global Order (Lexington) e Post-Western World: How emerging powers are remaking world order (Polity). Ele atualmente escreve um livro sobre a competição tecnológica entre a China e os Estados Unidos.

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