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Transição turbulenta nos EUA aponta roteiro para o Brasil em 2022 (EL PAÍS)

 

Tudo indica que o comportamento de Trump servirá como modelo para Bolsonaro em 2022. Resta saber se as instituições brasileiras mostrarão a mesma resiliência que as americanas

https://brasil.elpais.com/opiniao/2020-12-14/transicao-turbulenta-nos-eua-aponta-roteiro-para-o-brasil-em-2022.html

OLIVER STUENKEL
14 DEC 2020 – 20:19 CET

O debate sobre como caracterizar a estratégia de Donald Trump desde a derrota nas eleições está só começando. Para o deputado James Clyburn, a recusa do presidente em reconhecer o resultado do pleito é um atentado grave, e que merece um nome solene. “É uma tentativa de golpe”, disse o democrata, em entrevista à CNN. Trump “está tentando roubar a eleição, e seu partido ou aprova tacitamente ou finge não enxergar os fatos”, corroborou a socióloga Zeynep Tufekci, em artigo para a The Atlantic. Mas há quem veja a birra em uma chave menos grave. “O que está acontecendo não é um golpe, nem mesmo uma tentativa de golpe. É um esforço desajeitado de manchar o resultado das eleições”, afirmou o professor da Universidade de Tufts Daniel Drezner, no Washington Post.

Vários analistas apontam para o fato de que, desde a divulgação dos resultados, a principal motivação do presidente tem sido levantar dinheiro para pagar sua equipe de advogados. Um time estrelado e dispendioso deve defendê-lo nas inúmeras investigações que virão pela frente. A empreitada pode ser um fracasso jurídico, mas já é um sucesso financeiro. Na esperança de que o resultado realmente pudesse ser revertido, trumpistas crédulos doaram mais de 200 milhões de dólares desde a eleição.

Todas as tentativas foram derrubadas na Justiça. O dano, no entanto, está feito. Pesquisas indicam que a vasta maioria dos eleitores de Trump acredita que houve fraude e não enxergará Joe Biden como representante legítimo. A democracia americana sobreviveu, mas sairá de 2020 fragilizada, com sequelas que devem durar anos.

O trauma americano parece ser o melhor cenário possível para o Brasil de 2022. Com um presidente que iniciou sua campanha contra o processo eleitoral dois anos antes do pleito, as autoridades brasileiras responsáveis pelo planejamento das próximas eleições já consideram “inevitável” que Bolsonaro tente fazer algum tumulto. O repentino interesse em retornar ao esquema do voto impresso não tem nada a ver com uma preocupação real com a segurança: já é um ensaio para questionar o resultado de 2022, caso seja conveniente. Trump e Bolsonaro questionaram a confiabilidade até do pleito que os elegeram. Em 2016 e em 2018, os dois afirmaram que o processo teria sido “roubado demais”. A ideia era estabelecer que caso contrário teriam ganhado por uma diferença maior.

Seguindo o roteiro americano, é quase certo que uma derrota de Bolsonaro nas próximas eleições não teria o reconhecimento do presidente, nem de seus seguidores. Ambos estão preparados para abraçar a tese de fraude e para tentar levar o caso à Justiça. Na melhor das hipóteses, milhões de bolsonaristas devem tachar o próximo presidente de “golpista” e ilegítimo. Não dá para saber por qual sigla ele vai tentar a reeleição, mas se até o Partido Republicano dos EUA tem se furtado a uma condenação categórica das atitudes de Trump, o que esperar do partido de aluguel escolhido por Bolsonaro?

O reconhecimento da vitória do adversário é crucial para o jogo democrático: está na base das ideias de alternância de poder e de legitimidade do voto popular. A recusa de um candidato em reconhecer sua derrota é um evento intrinsecamente traumático, e que impõe uma séria ameaça à democracia. Nos Estados Unidos de 2020, o sistema sobreviveu ao ataque trumpista por três motivos.

O primeiro é que o judiciário americano pode atuar de maneira independente. Mesmo juízes conservadores — vários deles nomeados por Trump — rejeitaram os argumentos de seus advogados de maneira unânime. No fim, quem encerrou as inúmeras investidas do republicano foi uma Suprema Corte de maioria conservadora, que rejeitou ação do Texas para tentar reverter a derrota de Trump.

O segundo motivo é que políticos e funcionários públicos responsáveis pelo processo eleitoral não se curvaram à pressão autoritária do presidente. Essa pressão não foi nada sutil. Na Geórgia, por exemplo, o responsável pela contagem dos votos disse que estava sendo pressionado pelo senador republicano Lindsey Graham para descartar votos válidos a fim de reverter a derrota de Trump no Estado. Secretário de Estado da Geórgia e ele próprio republicano, Brad Raffensperger também afirmou que tinha recebido ameaças de morte.

Em terceiro lugar está a posição das Forças Armadas americanas, que deixaram clara sua oposição a qualquer tentativa de subverter a democracia. Na semana seguinte à divulgação do resultado, o general Mark Milley — oficial de mais alta patente das Forças Armadas dos EUA —, não deixou nenhuma dúvida sobre a postura dos fardados diante do comportamento de Trump. Em um gesto dramático, disse: “não fazemos juramento (…) a um ditador. Fazemos juramento à Constituição. Cada soldado (…) vai defender esse documento, independentemente do preço que tenhamos que pagar.”

É claro que a situação poderia ter sido mais grave caso a frustração dos milhares de cidadãos que acreditam na tese de Trump tivesse se traduzido em violência política e instabilidade nas ruas. Mas tudo sugere que, se um desses três grupos-chave — juízes, políticos responsáveis pelo processo eleitoral e Forças Armadas — tivesse agido de outra maneira, a investida autoritária do presidente poderia ter dado certo.

Logo após as eleições brasileiras de 2018, Matias Spektor escreveu que “num Governo Bolsonaro, o melhor cenário é Trump.” Analisando os dois primeiros anos da presidência republicana e a escalada autoritária que assola diversos países, Spektor apontou para o fato de que a democracia americana também tinha sido arranhada. Ao contrário do que acontecia em outras nações, no entanto, ela resistia mesmo estrupiada. Assim como ocorreu nos EUA em 2020, as próximas eleições presidenciais brasileiras trarão o embate entre as instituições democráticas e um presidente com claras tendências autoritárias. Apesar das turbulências na política americana ao longo das últimas semanas, um resultado parecido seria, de longe, o melhor cenário para o Brasil de 2022.

SOBRE

Oliver Stuenkel

Oliver Della Costa Stuenkel é analista político, autor, palestrante e professor na Escola de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas (FGV) em São Paulo. Ele também é pesquisador no Carnegie Endowment em Washington DC e no Instituto de Política Pública Global (GPPi) ​​em Berlim, e colunista do Estadão e da revista Americas Quarterly. Sua pesquisa concentra-se na geopolítica, nas potências emergentes, na política latino-americana e no papel do Brasil no mundo. Ele é o autor de vários livros sobre política internacional, como The BRICS and the Future of Global Order (Lexington) e Post-Western World: How emerging powers are remaking world order (Polity). Ele atualmente escreve um livro sobre a competição tecnológica entre a China e os Estados Unidos.

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