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Já deu, Ernesto! (O Globo)

 

Com a posse de Joe Biden, é imperativo trocar o chanceler, cuja função principal foi bajular Trump e animar a base bolsonarista

Oliver Stuenkel

13/01/2021 – 01:00

https://oglobo.globo.com/opiniao/ja-deu-ernesto-24835122

Em 20 de janeiro, quando Joe Biden tomar posse como 46º presidente dos EUA, Jair Bolsonaro perderá o único aliado internacional relevante que lhe restava, deixando o Brasil ainda mais isolado. Desde que Bolsonaro assumiu a Presidência, o Brasil já sofreu um desgaste na reputação e uma perda de influência internacional inéditos, produzindo crises nas relações bilaterais com a Argentina, a China, a França e a Alemanha, parceiros estratégicos tradicionais e mercados de grande importância para produtos brasileiros. Mesmo assim, o cenário internacional dos últimos anos apresentava uma vantagem para Bolsonaro: com Trump e suas políticas desestabilizadoras absorvendo parte da atenção da comunidade internacional, havia menos espaço para uma reação mais coordenada à política antiambiental e antimultilateral do governo brasileiro. Com Biden na Casa Branca, a pressão internacional contra Bolsonaro e o risco de boicotes contra produtos brasileiros aumentarão de maneira significativa.

O Partido Democrata vai controlar a Casa Branca, a Câmara e o Senado — e já tinha uma péssima imagem do mandatário brasileiro. Desde a vitória democrata, Bolsonaro e Ernesto Araújo conseguiram a façanha de piorar a situação. Na ânsia de agradar à própria base, os dois reforçaram a teoria conspiratória de fraude nas eleições presidenciais dos EUA, efetivamente questionando a legitimidade do governo Biden.

Em vez de articular uma estratégia sobre como o Brasil deveria se adequar às mudanças produzidas pela derrota de Trump, o assunto virou “tabu” no Itamaraty. Araújo ainda causou revolta entre democratas e a maioria dos republicanos ao chamar os invasores do Capitólio de “cidadãos de bem”. O comentário gerou a impressão de que o chanceler brasileiro mostrava apoio à tentativa de golpe e aos atos de terrorismo doméstico nos Estados Unidos. Enquanto Araújo estiver no cargo, será difícil evitar uma ruptura na relação com os EUA.

Substituir Araújo por um diplomata mais moderado decerto teria um custo político para Bolsonaro. Afinal, o isolamento do Brasil se deve não apenas às escolhas do presidente no âmbito doméstico, mas à decisão, tomada logo depois de sua eleição, de transformar o Itamaraty numa plataforma para manter mobilizados seus seguidores mais radicais. Ciente de que teria que abrir mão do discurso anticorrupção e anti-velha política em algum momento, utilizou a política externa, espaço em que presidentes enfrentam menos restrições do que no âmbito interno, para demonstrar aos seguidores fanáticos que mantém seu compromisso com a ruptura prometida.

O colapso da reputação do Brasil lá fora não foi, portanto, resultado de um descuido, mas uma consequência que Bolsonaro conscientemente aceitou em troca de um benefício político concreto. Enquanto celebra seu status de vilão global caricato e expressa nostalgia pela ditadura, seu chanceler brada orgulhosamente que “se falar em liberdade nos faz um pária internacional, que sejamos um pária”.

O cálculo político de Bolsonaro sempre foi que o custo econômico causado pela sua política externa radical seria compensado pelo ganho político interno. Mesmo com Trump na Casa Branca, porém, essa conta nunca fechou, pois não levava em consideração o estrago estratégico que a postura antiglobalista estava fazendo ao país no longo prazo. Com a derrota de Trump, a estratégia se torna ainda mais irresponsável, e é preciso que Bolsonaro reconheça que a permanência do seu chanceler equivale a condenar o Brasil não apenas ao isolamento diplomático completo, mas também põe em risco a já combalida economia brasileira e milhares de empregos que dependem da inserção do Brasil na economia mundial.

Oliver Stuenkel é professor de Relações Internacionais da FGV em São Paulo

SOBRE

Oliver Stuenkel

Oliver Della Costa Stuenkel é analista político, autor, palestrante e professor na Escola de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas (FGV) em São Paulo. Ele também é pesquisador no Carnegie Endowment em Washington DC e no Instituto de Política Pública Global (GPPi) ​​em Berlim, e colunista do Estadão e da revista Americas Quarterly. Sua pesquisa concentra-se na geopolítica, nas potências emergentes, na política latino-americana e no papel do Brasil no mundo. Ele é o autor de vários livros sobre política internacional, como The BRICS and the Future of Global Order (Lexington) e Post-Western World: How emerging powers are remaking world order (Polity). Ele atualmente escreve um livro sobre a competição tecnológica entre a China e os Estados Unidos.

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