Na leitura ocidental, retórica de Lula pode legitimar a narrativa russa sobre o conflito.
A proposta de Lula de criar um “clube da paz” para a Ucrânia é um sinal claro de que o atual governo brasileiro buscará articular uma diplomacia mais ativa, envolvendo-se diretamente no debate geopolítico mais relevante do momento. Em princípio, trata-se de uma boa notícia. Tradicionalmente pouco representada à mesa dos poderosos, a América Latina tem o potencial de assumir papel-chave em vários debates: o aquecimento global, a crise internacional de refúgio, a saúde mundial, a redução da pobreza, o crime organizado, entre outros. Mais engajamento por parte de um país não envolvido diretamente na guerra Rússia-Ucrânia também pode ser positivo: na década de 1990, por exemplo, o governo FHC liderou, juntos com os EUA, a negociação de um acordo de paz entre Peru e Equador depois de um breve conflito entre os dois países. À primeira vista, também parece uma iniciativa de baixo risco: o pior a acontecer seria as tentativas brasileiras de promover um diálogo entre Moscou e Kiev não surtirem efeito.
No entanto, seria um erro acreditar que o ativismo diplomático brasileiro em relação à guerra na Ucrânia seja sem risco para o Brasil. O governo Lula tem tentado, de fato, manter certo equilíbrio, tanto na retórica presidencial quanto nas votações na ONU. Disse em entrevista à revista TIME, ainda como candidato a presidente, que Volodymyr Zelensky seria “tão responsável pela guerra quanto Putin”, opinião fortemente criticada no Ocidente. Em fevereiro, recusou pedido alemão de compra de munição para tanques a serem enviados à Ucrânia sob o argumento de que o Brasil é um “país de paz“. Em gesto que alguns interpretaram como retaliação, a Alemanha embargou a exportação de blindados brasileiros para as Filipinas, usando seu direito de veto por deter a propriedade intelectual de alguns componentes dos veículos. Por outro lado, em fevereiro, o Brasil foi o único país do grupo BRICS a votar, na Assembleia Geral da ONU, a favor da resolução que pedia a retirada imediata das tropas russas da Ucrânia. O presidente brasileiro também chamou a invasão russa de “erro histórico“.
Mesmo assim, há profundo ceticismo no Ocidente quanto ao ativismo brasileiro em relação à Ucrânia, em parte porque, aos olhos de Kiev, Varsóvia, Berlim e Washington, a narrativa brasileira – “é preciso começar a falar sobre a paz” – acaba legitimando implicitamente o discurso russo segundo o qual o Ocidente teria interesse em prorrogar o conflito e não a dialogar. Diplomatas europeus e americanos apontam que diálogos e negociações ocorrem desde o início do conflito, em fevereiro de 2022. Da mesma forma, na leitura ocidental, o recente plano apresentado pela China serve acima de tudo para criar uma imagem segundo a qual a continuação da guerra se deve, sobretudo, a uma falta de disposição ocidental de sentar-se à mesa de negociação — e não à recusa russa de retirar suas tropas do território ucraniano e encerrar o que é visto na Europa como uma guerra de agressão. A percepção ocidental de que o Brasil pode acabar adotando uma postura mais alinhada com Moscou e Pequim foi reforçada pelo aparente desalinhamento em uma chamada entre Zelensky e Lula em fevereiro – os dois descreveram a conversa em termos muito diferentes depois – e a decisão do presidente Lula de declinar o convite de visitar Kiev. A expectativa do anúncio do “clube da paz” durante a visita de Lula a Pequim (adiada por motivo de doença do presidente brasileiro), e não em ambiente mais neutro, como a ONU, dificilmente ajudou a reverter essa percepção.
A sinalização brasileira de querer assumir um papel de destaque no diálogo sobre um possível acordo de paz na Ucrânia tem alguns paralelos com a decisão de Lula de negociar um acordo nuclear com o Irã em 2010. Em abril daquele ano, o presidente dos EUA, Barack Obama, escreveu carta a Lula pedindo que não se deixasse engabelar por Ahmadinejad, então presidente iraniano. Um mês depois, Lula apresentou, junto com o então premiê turco Erdogan e Ahmadinejad, um acordo nuclear que não obteve apoio ocidental e gerou uma crise na relação entre Brasília e Washington. Nada disso quer dizer que o resultado do atual esforço brasileiro será o mesmo, mas é preciso estar ciente dos riscos de a iniciativa brasileira acabar causando fricção, seja com o lado ocidental, seja com o lado sino-russo. Afinal, a Ucrânia hoje está no olho do pior furacão geopolítico em mais de três décadas.